Por que a cristologia ortodoxa exige uma expiação de intenção ilimitada?

14/07/2022

Como prometido ao meu caríssimo amigo Thiago, escrevo esse artigo a fim de esclarecer a veracidade dos pressupostos que a doutrina católica da expiação ilimitada se apoia para sustentar esse ensinamento. A intenção do texto é apenas mostrar a necessidade lógica da expiação ilimitada partindo das premissas da cristologia e como ela se relaciona com a doutrina da expiação. Nesse sentido, vale ressaltar os dois principais pressupostos reformados para sustentar o ensino de que Jesus morreu apenas pelos eleitos: A Dupla predestinação e a substituição penal pecuniária, a qual será tratada aqui.

O mais célebre argumento reformado para sustentar a doutrina da expiação limitada é a afirmação de que a morte de Jesus foi uma substituição pecuniária da punição pelos pecados. Ele (Jesus) sofreu a retribuição da justa ira divina contra os pecados no lugar dos pecadores, de modo que estes estariam, então, livres da punição. Assim, se Deus não pune o mesmo pecado duas vezes, e já puniu nossos pecados em Cristo, segue-se que nenhuma pessoa poderia ser condenada, visto que toda a punição para todas as pessoas do mundo fora esgotada em Cristo. Como isso conduz à heresia do universalismo, os calvinistas deduzem que Jesus morreu apenas pelos eleitos e, assim, podem explicar como tantas pessoas são condenadas.

Bem, se esse pressuposto for necessário à priori e representar a ortodoxia bíblica, a posição reformada estaria correta. Entretanto, como pretendo demonstrar aqui, esse ensino padece de alguns erros e é estranho à fé apostólica. Para que eu possa demonstrar isso, porém, devo esclarecer a relação das duas naturezas de Cristo e seu papel na expiação à luz da cristologia ensinada pelos pais reunidos em concílios ecumênicos.

Nesse prisma, é mister salientar que a cristologia Igreja conciliar não parte do pressuposto calvinista moderno de transferência de culpa e retribuição pelo pecado na expiação, antes, entende a salvação como uma cura, uma libertação da corrupção do pecado e uma redenção do cativeiro satânico. Tudo isso se dá pela união do homem com o divino, que permite ao homem participar dos atributos da vida divina, a imortalidade e incorruptibilidade. Desse modo, a cristologia católica entende que a encarnação foi o ápice da redenção, visto que, em Cristo, o divino e o humano são unidos em uma pessoa e, assim, ele se torna o único mediador entre Deus e os homens, pois é aquele que une em si o divino e o humano. A luz disso, S. Gregório Nazianzeno definiu o axioma que se tornou regra para a definição da cristologia ortodoxa: O que não é assumido pelo Logos, não é remido; por isso, o Logos teve de assumir a natureza humana por completo a fim de que todo o homem fosse remido.

Foi a partir daí, então, que o concílio de Calcedônia definiu que Jesus era perfeitamente Deus e perfeitamente homem, sem confusão, separação ou mistura. Mas o que vem a ser, de fato, essa união de naturezas? O ensino que recebemos dos pais é que o Logos não assumiu uma pessoa, mas a natureza humana considerada abstratamente em si mesma, e mediante a união desta com o Logos, ela recebe a personalidade. Assim, dizemos que a natureza humana de Cristo era "anipostática", isto é, sem personalidade intrínseca, mas recebia a personalidade da união com o divino. Isso nos ensina, por exemplo, Irineu de Lyon em seu paralelo paulino entre Cristo e Adão. Adão compreendia em si não somente um indivíduo particular, mas também a natureza humana abstratamente reconhecida e, da mesma forma como com sua queda toda natureza humana foi contaminada pelo pecado e morte, em Jesus, o segundo Adão, em quem a natureza humana existe em sua plenitude, toda a humanidade (o gênero humano) foi redimido e vivificado.

É nesse ponto que quero centrar o meu argumento. Se a redenção, além da morte na Cruz, compreende também a encarnação e a cura da natureza humana pela união com o Logos, como ensina o mestre Pelikan (a tradição cristã, volume 2), e essa natureza humana, como ensinam os pais, é entendida in abstracto, a conclusão lógica é que todos aqueles que partilham da natureza humana assumida possuem a promessa de redenção. Assim como a natureza humana como um todo caiu em Adão, a natureza humana como um todo foi vivificada pelo segundo Adão.

'Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado veio a morte, assim também a morte passou a toda a humanidade, porque todos pecaram. Mas o dom gratuito não é como a ofensa. Porque, se muitos morreram pela ofensa de um só, muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foram abundantes sobre muitos! O dom, entretanto, não é como no caso em que somente um pecou. Porque o julgamento derivou de uma só ofensa, para a condenação; mas a graça deriva de muitas ofensas, para a justificação.' Romanos 5:12,15-16

Por isso, a ortodoxia cristã reconhece a salvação tanto como um processo de cura e libertação, nas quais o homem é liberto da escravidão e do poder do pecado, participando dos atributos divinos (Theosis), tanto como satisfação, isto é, que Jesus Cristo, como ensina S. Anselmo, com todo o curso de sua obediência, alcançou para nós méritos infinitos e, entregando seu corpo à morte voluntariamente, ofereceu ao Pai um sacrifício de valor inestimável, capaz de cobrir a culpa de todas as pessoas e remir uma infinidade de mundos.

Assim, visto que Cristo unia em si a natureza humana ou o gênero humano como um todo e é, ao mesmo tempo, plenamente divino, ele foi capaz de oferecer um sacrifício de valor infinito com o qual, na carne, condenou o pecado e a morte (Rm 8.3), reconciliou o mundo como Pai (2 Co 5.17) e deificou o homem com o dom da imortalidade. Com isso, já posso responder a primeira objeção. A redenção não é uma substituição penal pecuniária, como imaginam os puritanos; ela não é a retribuição exata da pena dos nossos pecados em Jesus, antes, ela é o sacrifício de valor infinito que cobre todas as nossas faltas e, como foi realizada pelo Segundo Adão, que compreende todo o gênero humano em si mesmo, é uma satisfação que abrange toda a natureza humana que é curada e reconciliada com Deus.

Dito isso, responder a objeção calvinista de que essa doutrina implicaria na heresia do universalismo se torna muito mais simples. Trata-se da distinção entre reconciliação objetiva e reconciliação subjetiva ensinada pelos luteranos. "Ora, sendo o segundo Adão e representante da humanidade, a obra de Cristo tem extensão universal. Porém, existe uma diferença entre a reconciliação objetiva e reconciliação subjetiva que nos ajuda a entender como os méritos de Cristo chegam até nós. Objetivamente, Jesus cumpriu perfeitamente a lei no lugar de todos e se entregou como oferta pelos pecados dos homens, satisfazendo a justiça divina e adquirindo méritos suficientes para dispensar à todas as pessoas. Subjetivamente, os méritos alcançados na cruz devem ser recebidos através de meios, a palavra e os sacramentos. Por isso, nem todos recebem da graça dispensada, visto que não possuem a via receptiva que é o dom da fé que Deus concede. por esses meios" ¹ Ou seja, o perdão que Jesus alcançou para todos os homens -pois morreu por todos (1Jo 2.2, 2Co 5.15)- é dispensado a nós pelos meios que ele instituiu, a pregação da palavra e os sacramentos. O único meio de receber o perdão que esses meios oferecem é a fé que agarra a promessa e, portanto, aqueles que não têm fé, mas, ao contrário, rejeitam a mensagem da cruz, não bebem da fonte da graça, e o perdão não lhes é aplicado subjetivamente. Assim, a condenação consiste na rejeição da fé, oferecida pelos meios, e não no arbítrio de Deus em não desejar a salvação dos réprobos.

'Quem nele crê não é condenado; mas o que não crê já está condenado, porque não crê no nome do unigênito Filho de Deus. A condenação é esta: a luz veio ao mundo, mas os homens amaram mais as trevas do que a luz, porque as suas obras eram más. ' João 3:18-19

Respondida a objeção de que a crença na expiação ilimitada incorreria na heresia universalista, volto-me agora para apontar algumas falhas da cristologia calvinista que os fazem depender da doutrina da expiação limitada. Vimos acima a que a construção da cristologia calvinista, visando explicar a salvação com base na justiça retributiva de Deus contra o pecado, é totalmente estranha ao desenvolvimento cristológico da Igreja antiga que, por sua vez, tinha como ponto de partida a encarnação e a união com o divino. Além disso, quero destacar que a cristologia reformada (ao menos nos moldes de Zwínglio) desvia completamente da ortodoxia cristã ao radicalizar o axioma finnitum no capax infinitum e como esse desvio leva inevitavelmente à doutrina da substituição pecuniária para escapar de um paradoxo.

O axioma de que o finito não pode conter o infinito, da forma como expressa por Zwínglio contra Lutero, ensina não apenas que a humanidade era incapaz de conter localmente a divindade, mas que a humanidade não poderia participar dos atributos infinitos sem destruir sua finitude e que, por isso, não poderia ser instrumento das obras divinas. O argumento pode ser expresso em um sistema lógico (Todo A é B), pois segundo ele, toda comunicação de atributos ou qualquer coisa divina à humanidade levaria a destruição da humanidade. Porém, para a refutação lógica de proposições universais como essa, basta mostrar um exemplo contrário (algum A não é B) e todo argumento se desfaz. Isso, Martin Chemnitz faz utilizando o Genus Majestaticum, o qual prova que o homem Jesus recebeu a majestade e autoridade divina infinitas. Todavia, não será necessário mostrar isso por agora, visto que um ponto da cristologia patrística supracitado já é suficiente para tal.

Lemos acima que a natureza humana em Cristo é anipostática, ou seja, é abstratamente compreendida e não possui uma personalidade própria, pois esta é recebida do Logos. Ora, a natureza humana finita, na encarnação, recebe algo da divindade. Ela recebe a própria hypostasis do Logos, a pessoa divina que estava eternamente com o Pai. Se a própria união hipostática é a comunicação de algo divino (a personalidade) à natureza humana, como não supor que a carne poderia, também, em virtude da união indissolúvel, executar obras divinas? Zwínglio, ao negar a comunicação de atributos e, buscando preservar a impassibilidade divina, afirmando que apenas a humanidade morre na cruz, cai em um paradoxo que não consegue explicar o valor infinito da expiação. E mesmo Beza (Colloq Mompelg pág. 203) chega a admitir que "No que concerne à comunicação, isto é, a união das naturezas, em cada natureza suas propriedades permanecem distintas, mesmo na união, sem nenhuma comunicação."

Ora, a cristologia luterana responde a acusação dos calvinistas de que a participação da humanidade nas obras divinas destruiria a finitude da primeira, com a definição de Leão I (Tomo ad Flavianus) de que as propriedades essenciais da divindade não se tornam propriedades essenciais da humanidade, mas elas retêm suas características próprias, porém, nos atos oficiais da pessoa de Cristo, as ações não se dão separadamente, por natureza, antes, as ações ocorrem com a participação uma da outra. A isso S. João Damasceno, expoente da cristologia ortodoxa já consolidada, no livro 3 da obra "a fé ortodoxa", explica:

"Dizemos que as ações não são divididas e que as naturezas não agem de forma dividida, mas de forma unida, cada uma em comunicação com a outra fazendo exatamente aquilo que lhe era próprio. Você vê, a natureza humana não estava fazendo [apenas] coisas humanas. Pois as duas naturezas são um Cristo, e um Cristo é de e em duas naturezas. Portanto, é o mesmo dizer que Cristo está agindo de acordo com ambas as Suas naturezas e que cada um as duas naturezas estão agindo em Cristo com a comunicação da outra."

Assim, vemos que a fé preservada pelos pais, como no exemplo do Tomo de leão canonizado em Calcedônia e no excerto de Damasceno ecoando Atanásio, vê na encarnação uma união íntima entre as naturezas, de sorte que que o Filho do Homem pode executar obras divinas com, através e por meio da carne e, dessa forma, eles explicam a cruz nos termos que se seguem:

"A divindade operou os sinais divinos, mas não sem a carne, e a carne fez suas obras humanas, mas não sem a divindade. a divindade havia se juntado à carne sofredora, mas permaneceu impassível e fez os sofrimentos salutares. A alma santa tinha unido com a divindade operante da Palavra de Deus, e aquela alma entendeu e viu o que estava sendo realizado. Portanto, a divindade comunica à carne suas próprias glórias, mas ele permanece imune aos sofrimentos da carne. A divindade de a Palavra estava operando através da carne, mas Sua carne não eestava similarmente sofrendo através da divindade; desta forma, pois a carne é o instrumento da divindade." (J. Damasceno, A fé ortodoxa, livro III)

Dessa forma, os luteranos se unem aos pais da igreja ao afirmarem que o valor infinito da expiação de Cristo era devido a dignidade da sua pessoa e majestade divina comunicada à carne que era passível de padecer no madeiro. Sem a doutrina da comunicação de atributos, a carne não pode executar obras divinas, nem o sangue de Cristo pode perdoar pecados. É justamente por receber a energia divina, que o sangue de Cristo vivifica, como diz Cirilo de Alexandria e o concílio de Éfeso. Por isso, a forma que muitos calvinistas encontraram de manter a eficácia da expiação não poderia partir da dignidade do corpo entregue à morte, pois isso levaria a um paradoxo em sua doutrina, mas da doutrina da substituição penal pecuniária, já que, desse modo, seria possível Deus esgotar a punição pelos pecados dos Eleitos em um homem sem que isso implicasse em qualquer comunicação de atributos.

Portanto, finalizo dizendo que o Calvinismo pode manter sua doutrina dentro de um sistema logicamente coerente, porém, ao meu ver, para fazê-lo, precisa desviar da fé da Igreja antiga. A expiação limitada é plausível no campo da lógica, visto que depende apenas da vontade de Deus, porém não vejo nela coerência com o texto bíblico e com a cristologia ortodoxa. É apenas crendo que Jesus morreu por todos que nossa fé está depositada em algo seguro e indubitável. É apenas assim que é possível crer na eficácia sacramental objetiva e ter a certeza de que a graça que Jesus alcançou no madeiro chegou especialmente para mim e me salvou. Cristo redimiu a humanidade, Jesus é o salvador do mundo! 

Mateus Magalhães
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