O pecado original e o livre-arbítrio no Luteranismo confessional

19/09/2022

A relação entre o pecado e a graça ou entre a natureza e a providência ocupa um lugar central no entendimento da soteriologia. Nesse sentido, as diferentes tradições cristãs buscam estabelecer as bases de sua doutrina e tomam a relação do pecado do homem e sua liberdade como um dos pontos iniciais. Com efeito, o presente texto se propõe a expor a compreensão evangélica a respeito do pecado original e seus efeitos no livre-arbítrio e sua relação com a graça divina, à luz da Sagrada Escritura e em diálogo com a tradição da igreja.

A imagem e semelhança divina e o homem antes da queda

A bíblia ensina que o homem foi criado por Deus a sua imagem e semelhança (Gn 1.27), termos esses que são considerados sinônimos e significam que os seres humanos foram dotados de razão, liberdade e domínio, à semelhança de seu Criador. Entretanto, a definição de imagem divina no homem não se restringe apenas à presença de inteligência e vontade, mas na reta disposição do seu intelecto e sua vontade que, em virtude de serem criados bons, eram direcionados ao bem na medida em que estavam alinhados à vontade divina. Dessa forma, o homem antes da queda estava em um estado de justiça original, isto é, em harmonia com a justiça divina e gozava da plenitude do seu livre-arbítrio que, segundo Agostinho, significava a liberdade de não pecar.

O homem depois da queda e a escravidão da vontade

A harmonia desfrutada por Adão e Eva no jardim logo seria rompida. O pecado de nossos pais, os primeiros humanos, tentados por Satanás a desobedecer à ordem divina e, descrendo no Criador, buscar, sem ele, se tornarem como Deus e senhores do próprio destino, é chamado na teologia de Pecado Original. O pecado original, por sua vez, é definido tanto como a ausência da justiça original (Rm 3.10, 23), como por uma qualidade corrompida, também chamada de concupiscência (Gn 6.5, Rm 7.23). Entretanto, o pecado original não se restringiu apenas a Adão, mas foi propagado em toda raça humana, pois nele todos pecaram (Rm 5.12), isto é, toda raça humana estava em Adão quando ele pecou e dele foi gerada.

Dessa forma, dizemos que o pecado original é propagado pela geração carnal, agora maculada pelo pecado e sua sentença, como explica S. Gregório de Nissa (On beatitudes, Or 6):

"O mal esteve desde o início misturado com nossa natureza... por intermédio daqueles que, pela desobediência, introduziram a doença. Assim como na reprodução natural das espécies cada animal gera outro semelhante, o homem também nasce do homem, um ser sujeito a paixões nasce de um ser sujeito a paixões, um pecador nasce de um pecador. Desse modo, o pecado instala-se em nós quando nascemos; cresce conosco e fica em nossa companhia até o fim da vida."

Ora, tudo isso pode ser demonstrado na Escritura que diz que Adão gerou seu filho à sua semelhança (Gn 5.3), que por sua vez gerou outro à própria semelhança e assim sucessivamente, de modo que toda a humanidade decorre de Adão sendo gerada, por reprodução natural à sua imagem. Isso explica, portanto, porque todos partilham da mácula do pecado original, pois quem poderá tirar uma coisa pura do que é impuro? (Jó 14.4) Ou, como pode uma fonte contaminada gerar algo limpo? Assim, como diz a Escritura, o homem, após a queda, é desde a sua concepção envolto em pecado, chamado transgressor desde o ventre materno (Sl 51.5, Is 48.8), pois o que nasce da carne é carne (Jo 3.6) e a carne maculada está em inimizade para com Deus, pois não se sujeita a sua lei e nem sequer pode fazê-lo (Rm 8.7) e, portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus (Rm 8.8). Visto que todos os homens nascidos por reprodução natural descendem de Adão, a fonte contaminada, sendo carne nascidos da carne, todos pecaram (ainda que não seja pecado atual e pessoal como no caso das crianças, nesse caso, elas herdaram a natureza corrompida que nada pode fazer de bom) e estão alheios à glória de Deus (Rm 3.23), vendidos como escravos ao Diabo (Ef 2.2) e completamente mortos em seus pecados e transgressões.

Os efeitos do pecado original, por seu turno, afetam não apenas a superficialidade do homem, mas macula todas as suas faculdades. Desse modo, o livre-arbítrio, que antes era perfeito em Adão, é obscurecido e a vontade humana se torna cativa do pecado, pois quem peca se torna escravo do pecado (Jo 8.34) e, desde a mocidade, tal vontade é voltada apenas para o mal (Gn 6.5). Aqui, urge uma definição precisa do que é esse livre-arbítrio, posto que ele é considerado pelos padres da igreja como um atributo essencial da natureza humana, de sorte que, sem ele, a própria humanidade é destruída e S. Agostinho deixa claro que quem quer que negue a existência do livre-arbítrio não pode ser católico.

Inicialmente, deve se ressaltar que o pecado original não é uma substância ou a essência do homem corrompido - como diz a fórmula de concórdia contra a heresia do maniqueísmo (Art. 1) - posto que o mal não existe como substância ontologicamente positiva, mas é um acidente na alma que traz como efeito a corrupção de todas as suas faculdades. Logo, a substância do homem é plenamente mantida, assim como também o é o livre-arbítrio. Os teólogos luteranos creem na existência do livre-arbítrio, mas com uma cuidadosa distinção das formas com as quais ele pode ser entendido. Segundo J. Gerhard na obra "On sin and Free choice", o homem tem liberdade da compulsão ou liberdade da necessidade, ou seja, é livre para agir segundo a sua vontade e não tem suas ações determinadas por coerção fatalista. Em suas palavras:

"Como essa liberdade [liberdade de compulsão] é uma propriedade natural e essencial implantada por Deus na vontade, ela não foi perdida com a queda. A substância do homem não pereceu. Portanto, nem a alma racional, nem a vontade, nem a liberdade essencial da vontade [se perdem]. A vontade é um poder essencial da alma, e a alma nada mais é do que esses poderes ou faculdades essenciais"

Dessa forma, o homem age sempre de forma livre, ou seja, sem coação, e, por isso, é responsável por seus atos. Todavia, a liberdade humana está debaixo da vontade que, por seu turno, foi tornada cativa do pecado, de modo que todas as coisas que ela deseja estão maculadas pelo pecado. É como se o homem fosse livre para escolher dentre as várias opções de um leque variado de possibilidades, mas todas as possibilidades desse leque estão dentro do que a vontade pode desejar e esta está cativa ao pecado e escrava de Satanás. Nesse sentido, S. Agostinho escreve (De gratia et libero arbítrio): A vontade em nós é sempre livre, mas nem sempre é boa. Pois está livre da justiça quando serve ao pecado, e então é má; ou está livre do pecado quando serve à justiça, e então é boa." e ainda:

"Portanto, a liberdade de escolha existe no homem juntamente com a escravidão ao pecado, pois ele peca e é incapaz de não pecar; contudo, ele peca livremente, e se deleita em pecar. Embora ele seja levado apenas para o mal, ainda assim isso acontece livremente, isto é, por si mesmo e voluntariamente, não involuntariamente nem coagido. Ele escolhe [algo] e é levado a isso com força total. Além disso, nesse deleite pelas coisas más, ele emprega uma espécie de liberdade. O livre arbítrio não pereceu tanto em um pecador; visto que todos os que pecam com prazer pecam." (Contra Julian., livro 1, cap. 2).

Assim, afirmamos que o homem é plenamente responsável por suas ações, pois as faz livremente e conforme a sua vontade, ao mesmo tempo em que é escravo do pecado e de seus efeitos. Ademais, ainda concedemos ao livre-arbítrio a consecução da justiça civil, para viver de modo virtuosa externamente e escolher entre aquelas coisas que a razão compreende (Confissão de Augsburgo, Art. XVIII), mas o homem é incapaz, enquanto não regerado, de direcionar sua vontade à prática do bem espiritual, de realizar qualquer obra meritória diante de Deus, de decidir, por suas forças naturais, crer no evangelho e cumprir a lei divina. Nesses casos, subscrevemos a tese de Lutero na disputa de Heidelberg: "O livre-arbítrio é coisa morta, sendo apenas uma questão de nome, expressando algo vazio.",. Tese essa que não é estranha à tradição da igreja, pois o bispo de Hiponna diz:

"O homem usa mal sua livre escolha e destrói tanto a si mesmo quanto a ela. Pois como ele peca com o livre arbítrio, o pecado foi o vencedor e o livre arbítrio também foi perdido, pois uma pessoa se entrega como escravo daquele por quem foi conquistado." (Ench. Cap 30) "O livre arbítrio cativo não realiza nada exceto na direção do pecado, mas não realiza nada para a justiça a menos que seja divinamente liberto e ajudado".(Contra duas ep. de pelágio, livro 3, cap 8)

Além disso, o bispo de Arles, na conclusão dos cânones do Concílio de Orange, diz: "Devemos pregar e crer que, por causa do pecado do primeiro homem, o livre-arbítrio foi a tal ponto desviado e enfraquecido que ninguém depois poderia nem amar a Deus como convinha, nem crer em Deus ou por Deus operar o que é bom, se não o prevenisse a graça da misericórdia divina."

Com efeito, antes da regeneração, o livre-arbítrio é livre apenas para pecar, de sorte que tudo o que escolhe livremente é pecado, porquanto está debaixo da vontade que, por sua vez, está cativa a Satanás e morta para o bem. Logo, tudo o que um homem faz antes de nascer de novo é pecado, pois tudo o que é feito sem fé é pecado (Rm 14.23) e sem fé é impossível agradar a Deus (Hb 11.6), de sorte que todas as ações praticadas na carne são frutos da carne (Gl 5.19-21) e, procedendo da carne maculada, não podem ser puras (Jó 14.4), posto que o penhor da carne é a inimizade com Deus (Rm 8.7). Desse modo, até mesmo as nossas obras de justiça, todas elas, antes da regeneração, são como trapo de imundície (Is 64.6). Dessa forma, o anátema do concílio de Trento (Cân. 7. Se alguém disser que todas as obras feitas antes da justificação, de qualquer modo que se façam, são verdadeiramente pecados ou merecera o ódio de Deus [...]- seja excomungado.) recai sobre a própria Escritura e, como se não fosse o bastante, sobre seus próprios santos canonizados, posto que Agostinho diz:

"(Ad Bonif. Livro 3, cap 5) Sem fé, as obras que parecem boas se transformam em pecados, pois tudo o que não é feito com fé é pecado". Contra Juliano. (bk. 4, cap. 3):"Não pode haver verdadeira virtude exceto naquele que é justo, mas ninguém pode ser justo sem fé". Tratado sobre o Salmo 31:"Embora as obras que são ditas terem sido feitas antes da fé possam parecer louváveis para as pessoas, eles são inúteis."

A conversão e o livre-arbítrio do homem após a regerenaração 

A luz dos argumentos supracitados, a conclusão óbvia é que o livre-arbítrio humano não é capaz de direcionar sua vontade, consentir e confiar nas promessas do evangelho, posto que, sendo escravo do pecado e completamente morto em transgressões (Ef 2.1), provém da carne que, por seu turno, está corrompida pelo pecado, e não pode discernir as coisas espirituais e nem com elas consentir porque lhe parecem loucura (1 Co 2.14). Assim, o homem é incapaz de crer ou mesmo de desejar verdadeiramente crer no evangelho, a menos que seja vivificado (Ef 2.4), regenerado pela água e pelo Espírito (Jo 3.5) e tenha seu coração de pedra transformado em um coração de carne (Ez 36.26). Um morto não pode vivificar a si mesmo, um escravo, por si só, não pode ser liberto das amarras do seu senhor que o domina e um homem não tem o poder de transformar seu próprio coração. Por isso, a conversão é obra divina, é Deus quem realiza em nós o querer e o realizar (Fp 2.13), visto que não somos capazes de pensar alguma coisa e confiar em Cristo por nós mesmos (2 Co 3.4-5), pois ninguém pode dizer que Jesus é Senhor, senão pelo Espírito Santo (1 Co 12.3) e só temos a perfeita revelação de Jesus se ela nos for dada pelo Espírito (Mat 16.16), de forma que só podemos ir a Cristo se Deus antes nos atrair (Jo 6.44) e apenas se o Filho nos libertar, é que seremos realmente livres (Jo 8.36)

A Igreja ortodoxa Grega, por outro lado, seguindo a posição de João Cassiano (monge que reagiu a teoria agostiniana), assevera que o livre-arbítrio do homem persiste após a queda e é capaz de desejar o bem, inclinar-se para o que é bom e escolher e operar o bem (Confissão de Dositheus, Decreto XIV), contudo essa vontade do livre arbítrio para o bem não pode realizar as obras da salvação sem ser complementada pela graça divina, de sorte que é dada a medida em que é buscada pelo homem, para completar o que sua fraqueza não lhe permite. Em oposição a isso, afirmamos com Agostinho que a graça subsequente de fato ajuda uma boa intenção, mas a intenção em si não existiria a menos que a graça a precedesse. E o zelo do homem que se chama bom é ajudado pela graça quando começa a existir, mas é inspirado por Aquele de quem se diz: 'É Deus quem opera em você o querer e o fazer' [Fil. 2:13]. Ademais, o concílio de Orange no século XI definiu a vitória da posição agostiniana contra a posição de Cassiano ao definir que o livre-arbítrio natural é incapaz de se direcionar à graça, praticar a lei perfeitamente e crer no evangelho nos termos que se seguem:

"Cân. 3. Se alguém diz que a graça de Deus pode ser conferida por causa da invocação do homem, não porém que a própria graça faz com que seja invocada por nós, contradiz o profeta Isaías e o Apóstolo, que o cita: "Fui encontrado pelos que não me procuravam; manifestei-me aos que não me interrogavam [Rm 10,20; cf. Is 65,1]."

"Cân. 7 Se alguém afirma que pela força da natureza se pode pensar como convém ou escolher algum bem atinente à saúde da vida eterna, ou então, que se pode consentir à pregação salutar, isto é, evangélica, sem a iluminação e a inspiração do Espírito Santo, que dá a todos suavidade no consentir e no crer na verdade, é enganado por um espírito de heresia, não compreendendo a voz de Deus, que diz no Evangelho: "Sem mim nada podeis fazer" [Jo 15,5]; nem o que diz o Apóstolo: "Não que por nós mesmos possamos considerar alguma coisa como se viesse de nós, mas a nossa capacidade vem de Deus [2Cor 3,5]."

Contudo, urge salientar que nossa conversão não é coercitiva, não somos como uma pedra estática movida sem reação; antes o Espírito santo, mediante os meios da graça e a regeneração do nosso coração, nos faz desejar livremente a promessa do evangelho, ou, como diz Agostinho, Ele torna nolentes em volentes. Assim, ele opera em nós a vontade (agora liberta) de crer (Fp 2.13), pois por nós mesmos não poderíamos pensar em coisa alguma (2 Co 3.4-5), e, então, nos dá a própria fé como um dom (Ef 2.8).

Por fim, quando somos regerados pelo Espírito Santo e recebemos o dom da fé, nosso arbítrio, então, é liberto e nós podemos, agora, buscar o bem e, como diz Gerhard, cooperar com a graça santificante para a prática da lei com os poderes que o Espírito nos concede e, assim, restaurar a santidade da natureza humana que fora afetada pela queda. Todavia, esse processo de cooperação do livre-arbítrio regenerado com a graça santificante não é de todo perfeito nessa carne, visto que persiste em nós a concupiscência contra a qual lutamos (Rm 7.15-18) e que nos faz tropeçar em pecados, razão pela qual nossa justificação não depende da nossa cooperação com a graça para cumprir a lei divina, mas é a graciosa disposição de Deus de nos perdoar os pecados por causa de Cristo. O homem regenerado luta contra o pecado e a concupiscência durante toda a vida enquanto permanece na carne com a esperança, contudo, de que a própria carne será redimida (Rm 8. 21-24) e quando for glorificada, será perfeitamente livre do pecado (liberdade para não pecar).

Portanto, firmamos nossa posição na Escritura. Reconhecemos que somos completamente impuros, mortos em nossos pecados e transgressões e incapazes de qualquer virtude diante de Deus. Mas Deus, pelo grande amor pelo qual nos amou, nos vivificou em Cristo (Ef 2.4-5), perdoou graciosamente nossos pecados (Sl 32.1-2), nos livrou do cativeiro do Diabo pela cruz de Cristo (Col 1.13), nos regenerou pela água e pelo Espírito (Jo 3,5) e nos capacitou para toda boa obra (Ef 2.10), restaurando, de glória em glória, a semelhança do Senhor em nós (2 Co 3.18) na esperança da ressurreição (Rm 8.24).



Referências

  • On Sin and free choice, J. Gerhard
  • Christian Domatics, Franz Pieper
  • Dogmática cristã, J. Muller
  • The Doctrine of man in Martin Chemenitz e J. Gerhard
  • Denzinger, compêndido dos símbolos e declarações de fé e moral
  • J.N.D Kelly, patrística: origem e desenvolvimento das doutirnas centrais da fé cristã
  • Jaroslav Pelikan, a tradição Cristã, volume I
  • João Cassiano, conferência 13, new advent church fathers
  • Livro de Concórdia
  • https://wittenbergs.wordpress.com/2022/08/17/pais-igreja-discordam-agostinho-florilegio/


Mateus Magalhães
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