J. Gerhard e a doutrina justificação forense

13/12/2021

Prefácio do tradutor

O presente artigo é uma tradução de alguns trechos do loci do teólogo luterano J. Gerhard sobre o assunto da justificação, no qual ele argumenta extensivamente o tema, utilizando de intenso repertório bíblico e patrístico, além de um excelente domínio das línguas originais. No trecho a ser traduzido, Gerhard responde as objeções do cardeal católico Belarmino e de outros teólogos romanos posteriores ao concílio de Trento, provando o sentido forense do termo "justificação", ou seja, o sentido de remissão de pecados, da recepção de uma declaração de inocência ante a lei divina e da imputação da justiça de Cristo pela fé.

No argumento posterior a esse, (que não é contemplado nesta tradução), Gerhard responde a antítese, isto é, a reivindicação de Belarmino de que "justificação" é uma palavra que denota infusão de justiça. Lembre-se que o artigo é um breve recorte; para estudar profundamente seus argumentos recomendo que leia a obra inteira, a qual você encontrará com o nome de "Justification through faith", disponível em inglês.

nota: alguns termos em hebraico não foram reconhecidos na atual plataforma e serão substituídos pela letra "H"

O sentido forense é demonstrado

Qualquer palavra que indique um ato judicial contrastando com a condenação, que tem cognatos e equivalentes lexicais do universo jurídico, tem um sentido forense. Por agora, todas essas características se encaixam no termo justificação que será analisado. Portanto, a conclusão não deve ser negada.

  1. Por que o termo denota um ato judicial

Porque indica um ato judicial não apenas fora da doutrina da justificação gratuita diante de Deus, mas também no próprio artigo de justificação. Exemplos do primeiro ocorrem em toda a Escritura. "Ai daqueles que o justificam (H, "pronunciando-o justos") o culpado de suborno "(Is 5:23). "Se houver uma disputa entre homens e eles vierem ao tribunal e os juízes decidirem entre eles, deixe-os justificar o justo "(Dt 25: 1) isto é, deixe-os absolver aquele que tem um justo caso - 'e condenar' (H, o que significa "declarar ímpio") os maus. "Que alguém me coloque como juiz da terra, para que todos os que tiverem litígio e casos possam vir até mim e que eu possa justificá-los " (2 Sam. 15: 4). "Julguem os fracos e os órfãos e justifiquem os desamparados e destituídos "(Sl 82: 3).

Exemplos como esses seguem "Não entre em juízo com o teu servo, porque à tua vista não há justo nenhum vivente" (Sl 143.2) "Como pode um homem ser justificado diante de Deus? Se alguém desejasse discutir, nenhuma de mil coisas lhe poderia responder "(Jó 9: 2-3). [Além disso], o cobrador de impostos que se acusa e pede perdão a Deus em suas orações é dito ter descido para sua casa "justificado", isto é, absolvido de seus pecados (Lucas 18:14).

Lyranus, de mesmo modo, explica: "Não apenas o julgamento mencionado no Salmo 143: 2, mas a consequência do argumento de Davi evidencia um significado forense para o termo 'ser justificado'. Se 'justificar' significasse 'infundir justiça', não haveria nenhuma sequência lógica nas palavras de Davi, mesmo se Deus entrasse em julgamento com Seu servo, Deus ainda poderia infundir justiça nele."

[Por isso], Chemnitz indica o uso do termo de três formas: (1) Absolver da ameaça de acusação criminal o acusado que foi levado para tribunal para que não seja condenado judicialmente. (2) Considerar, pronunciar, receber e aceitá-lo como justo. (3) Atribuir o louvor, testemunho e recompensas que são devidas aos justos e inocentes assim justificados."

Resumidamente, a palavra "justificar" em geral significa declarar alguém justo, seja ele realmente justo ou injusto. Quando isso se relaciona com Deus, é usado ativamente, para absolver os pecados e declarar um justo, ou passivamente, pelo fato de que a justiça de Deus é reconhecida e declarada por outros.

2. Porque o termo é usado em contraposição à condenação

Alguns exemplos disso são: "Se houver uma disputa entre os homens, que justifiquem o justo e condenem o iníquo" (Dt 25:1). "Julgue Seus servos condenando os ímpios e justificando o justo" (1Rs 8:32). "Aquele que justifica o ímpio e condena os justos é uma abominação para o Senhor " (Prov. 17:15). "Por suas palavras você será justificado e por suas palavras você será condenado" (Mt. 12:37).

Ou ainda: "Por que o julgamento derivou de uma só ofensa, para a condenação (εἰς κατάκριµα); mas a graça deriva de muitas ofensas, para a justificação (εἰς δικαίωµα) "(Rom. 5:16). "Quem intentará qualquer acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem justifica (δικαιῶν) ([isto é, declara justos]). Quem os condenará? " (RM. 8: 33-34). Portanto, assim como condenar é reconhecer ou atribuir culpa da maldade e impiedade, absolver da falta é declarar alguém como justo.

A isso, Belarmino contra-argumenta reconhecendo que o termo é contraposto com a condenação, mas, ainda assim, não possui conotação forense:

"Embora a condenação às vezes seja um ato de um juiz que atribui punição a aquele que é considerado culpado em um julgamento, às vezes também é o efeito da falta de quem mereceu punição. Pois Adão e Deus nos condenaram. Mas Adão não condenou nos julgando ou de forma forense, mas iniciando a culpa original; por outro lado, Deus nos condenou julgando. Assim também Cristo, o segundo Adão, primeiro nos justifica ao destruir pecados e infundir graça, e, em segundo lugar, no Dia do Julgamento Ele nos justificará ao nos declarar justos."

Nós respondemos. É suficiente para o nosso caso que Belarmino admita que, quando a condenação é descrita como um ato de Deus, aí a palavra tem um significado forense. Acrescento outra pequena premissa: "Em todas essas passagens o termo "condenação" é atribuído a Deus como o juiz justo, e, em contraste, [é apresentado que] nós somos considerados justificados pela fé em Cristo. Portanto, "justificação", naquelas as passagens, deve ter um significado forense [em virtude do paralelismo]. Além disso, Belarmino tem que provar, e não afirmar abertamente, que a condenação não é uma palavra forense em alguns lugares. Ele não encontrará suporte para estabelecer o outro significado de condenação na declaração do apóstolo (Rom. 5: 16), já que ele mesmo confessa que, nessa passagem, condenação significa a ação de um juiz, a qual não pode deixar de ser forense e judicial.

O julgamento de Deus é certamente justo quando Ele justifica uma pessoa por conta da justiça de Cristo imputada mediante a fé, assim como Seu julgamento também foi justo quando Ele feriu Seu Filho por causa dos nossos pecados. Mas a partir disso não se deve e não pode ser inferido que Ele nos justifica por conta de uma justiça inerente. Caso contrário, não seria o ímpio que é justificado, mas o justo, embora o apóstolo declare o contrário (Rm 4:5). Falaremos sobre isso posteriormente.

3. Porque os cognatos do termo têm sentido forense

Porque todo o ato de justificação é descrito em termos forenses. Pois o que se segue são as expressões usadas: "julgamento" (Sl. 143: 2), "o juiz" (Jo 5:27), "tribunal" (Rom. 14:10), "a Lei" (Rom. 3:19), "o acusador" (Jo 5:45), "uma testemunha" (Rom. 2:15), "vínculo" (CL 2:14)," devedor "(Mat. 18:24)," advogado "(1Jo 2: 1), "Absolvição" (Salmos 32: 1). A Lei acusa o pecador antes do julgamento de Deus para que ele possa ser responsabilizado (ὑπόδικος) diante de Deus (Rom. 3:19) e para que sua consciência possa aprovar (συµµαρτυρούσης) esta acusação de que a Lei testifica (Rom. 2:15). Uma vez que toda a natureza do homem e todas as suas obras foram tão miseravelmente contaminadas pelo pecado, já não há nada que ele possa usar contra o julgamento de Deus. Portanto, a Lei ressalta o raio da maldição e condenação contra aquele que é condenado pelo pecado. Mas o Evangelho mostra Cristo como o Mediador que fez a satisfação pelas dívidas dos nossos pecados com Sua obediência perfeita. O pecador, aterrorizado e condenado pela voz da Lei, busca a Ele como refúgio na verdadeira fé. Ele se agarra a esta justiça de Cristo contra o julgamento de Deus e a lei que o acusa e é justificado por esta imputação com respeito a ele. Ou seja, ele é absolvido da sentença de condenação e declarado justo.

4. Porque o termo tem equivalentes jurídicos

Porque as formas equivalentes de falar também são judiciais. Pois "ser justificado" é "não ser chamado a julgamento" (Salmos 143: 2), "não ser condenado "(João 3:18)," para não entrar em juízo "(João 5:24), "não ser julgado" (João 3:18). [Vemos que] o coletor de impostos desceu para casa justificado, ou seja, absolvido de seus pecados. Ele orou por perdão com gemidos graves e lágrimas de arrependimento (Lucas 18:14). O apóstolo Paulo explica que "justificar" é "imputar justiça" (Rom. 4:3); "Reconhecer a fé para a justiça "(v. 5); "encobrir as iniqüidades, para não contar o pecado" (v. 7); "remissão de pecados" (Rom. 3:25); " perdão dos pecados" (Colossenses 2:13). Ademais, as seguintes frases também pertencem a esse tópico: "reconciliados com Deus" (Rom. 5:10), "ser contados como justos "(v. 19)," se tornar um participante da bênção "(Efésios 1: 3); e "receber o perdão dos pecados" (Atos 10:43). Por fim, um exemplo elegante de justificação é especialmente mostrado para nós no servo que devia a seu mestre dez mil talentos e obteve a remissão da dívida e anulação da punição por causa da graça de seu mestre (Mt 18:27).

5. Porque o os antigos também admitiam um sentido forense para o termo

Epístola à diogneto: "Que outra coisa poderia COBRIR OS NOSOS PECADOS SENÃO A SUA JUSTIÇA? Por meio de quem poderíamos ser JUSTIFICADOS, nós os injustos, a não ser UNICAMENTE pelo Filho de Deus? Ó doce troca, ó obra insondável, ó inesperados benefícios! a injustiça de muitos foi reparada por um só Justo, e a JUSTIÇA DE UM SÓ torna justos muitos outros!"

S. Justino Mártir (Dial. Com Tryph., P. 207): "A bondade e a gentileza de Deus consideram aquele que se arrepende e se volta de seus pecados como sendo justo e como alguém que nunca pecou, assim como Ele diz por meio de Ezequiel [18: 21-22]. "

S. Ambrósio (sobre Romanos 4): "São manifestamente abençoados aqueles cujos os pecados e iniqüidades foram perdoadas e cobertas sem qualquer trabalho e esforço. Não são necessárias obras de penitência deles, exceto apenas que eles creiam. " [Ambrósio novamente] (sobre Romanos 8): "Quando a justificação será completada em nós, exceto quando a remissão de todos os pecados nos é dada? " Ambrósio novamente (sobre Salmo 118, sermão. 3): "Ele é quem diz que seus pecados são justificados (perdoados). "

Jerônimo (Contra Pelag., 1): "Somos justos quando confessamos que somos pecadores, e nossa justiça consiste não em nosso próprio mérito, mas na Misericórdia divina." Agostinho (De Spiritu et lit., 1, cap. 26): "Os cumpridores da Lei serão justificados, isto é, eles serão considerados e contados como justos. " [Agostinho de novo] (De civ. Dei, bk. 19, cap. 27): "Embora nossa própria justiça pode ser verdadeira por causa do objetivo do verdadeiro bem para o qual objetivou, todavia, é grande na medida em que consiste na remissão de nossos pecados ao invés da perfeição de nossas virtudes. Em testemunho disso está a oração de toda a cidade de Deus que vagueia pela terra, pois todos os seus membros clamam a Deus dizendo: "Perdoe-nos as nossas ofensas! '[Mat. 6:12]." [Agostinho novamente] (no Salmo 31): "...Mas como? Você fez nada de bom, e o perdão dos pecados é concedido a você. Seus trabalhos são examinados, e todos eles são considerados iníquos. Se Deus render o que suas obras merecem, então certamente Ele o condenaria. O que acontece então? Deus não dá a você a punição devida, mas indevida graça. Ele devia vingança, mas dá perdão. "

Oecumenius (sobre Romanos 3): "A justiça de Deus é justificação de Deus, absolvição e remissão dos pecados, dos quais a própria Lei não poderia e não absolveria... Como é que justificação acontece? Através do perdão dos pecados que recebemos em Cristo."

Bernardo (De annunt. B. Mar., ser. 1, col. 106): "Se você acredita que seus pecados não podem ser apagados, exceto por Aquele contra quem você pecou e sobre quem o pecado reside, você faz bem. Mas adicione isso também, que você também crê que por meio dele seus pecados são perdoados (etc.). Por isso, o apóstolo ensina que aquele que é justificado, o é gratuitamente por meio da fé". [Novamente] (sobre Cântico dos Cânticos, sermão 23): "Ó, bem aventurado aquele a quem o Senhor não imputa o pecado! Pois quem não tem pecado? Ninguém, pois 'todos pecaram e carecem da glória de Deus '[Rom. 3:23]. Mas quem vai acusar o eleito de Deus? [Rom. 8:33]. [Bernardo novamente] (Carta 190): "Onde há reconciliação, também há perdão de pecados, e o que é isso senão justificação?

6. Alguns dos nossos adversários admitem e aprovam esse sentido do termo

Alguns de nossos próprios adversários reconhecem isso, pois Pineda escreve (sobre Jó 4): "Justificar significa declarar justo e é uma palavra forense." Novamente ele (sobre Romanos 8): "É Deus quem justifica o ímpio. Quem vai condenar?"

Vega (De justiåc., 5, cap. 3): "Às vezes,' ser justificado 'é o mesmo que 'ser declarado justo', como em Romanos 6, onde ele diz que aquele que está morto para os pecados foi justificado de seus pecados através do Batismo, isto é, sido absolvido deles, o que é um termo forense. "

Tiletanus (Confut. Antverpiensis confessionis, ch. De justif.) Admite: "a palavra 'justificar 'muitas vezes significa 'absolver', e não' fazer justo' pela infusão de novas qualidades".

O próprio Belarmino esqueceu [suas próprias palavras] (De poenit., 1, cap. 10, § promis.): "O que é a remissão de pecados exceto a justificação?" De sacramentis (1, cap. 9, § solum): "A absolvição exterior pronunciada oralmente (no sacramento da penitência) "tem uma analogia com a justificação interior, que Deus efetua".

No entanto, o ministro absolvedor não infunde justiça, mas justifica, com um significado forense, isto é, ele declara o penitente absolvido. Portanto, para a analogia ser internamente consistente, a justificação interna que Deus efetua também deve consistir em absolvição de pecados ou na remissão de pecados.

Notas finais

Com os argumentos supracitados, Gerhard, responde as objeções dos teólogos tridentinos e oferece uma prova do sentido forense do termo "justificação" não somente na Escritura, como também nos pais da igreja e nos próprios teólogos papistas. A partir daí, Gerhard inicia uma extensa argumentação em resposta ao cardeal Belarmino e sua reivindicação do termo "justificação" se referir a uma qualidade infusa que se torna inerente ao ser humano, o que pode ser um tema para uma outra ocasião.



Mateus Magalhães
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