Introdução à teoria da satisfação vicária

10/08/2021

Tempos atrás, juntamente com alguns amigos, fui coautor de um artigo defendendo uma outra teoria da expiação, a doutrina da substituição penal. Porém, fui convencido com bons argumentos de que essa doutrina não expressa, em sua totalidade, a verdadeira obra de Cristo na cruz. Nesse sentido, como retratação, desejo expor uma teoria da expiação que, ao meu ver, é muito mais equilibrada e completa, a saber, a teoria da satisfação vicária. Assim sendo, o artigo se propõe a dar uma breve explicação e defesa da teoria da satisfação vicária na bíblia, na tradição da Igreja e nos documentos confessionais. Para que o artigo não fique muito extenso e cansativo, as críticas a doutrina da substituição penal, bem como contribuições da teoria do resgate e outras informações adicionais, são tratadas no nosso podcast sobre o assunto e nos links complementares disponibilizados ao final da página. Dito isso, vamos ao texto.

Por que Deus se fez homem?

A teoria da Satisfação Vicária, originalmente sistematizada por S. Anselmo de Cantuária, no livro Cur Deus Homo, escrito no século XII, se propõe a compreender a obra de expiação e, ainda mais precisamente, a encarnação de Jesus. Em síntese, por meio de uma conversa com Boso, um dos seus discípulos, Anselmo ensina que o homem, ao pecar, ofendeu a honra divina e que seria insensato e contrário à natureza de Deus, que o pecado e suas consequências permanecessem e sua honra fosse ofendida. Por isso, é necessário que a todo pecado siga a satisfação, isto é, a devida restituição do que foi tirado, ou a penalidade. 

"Não há coisa que menos se possa tolerar do que aquela criatura que tira a honra devida ao Criador e não paga o que deve. (...) Portanto, é necessário que se lhe devolva a honra que lhe foi tirada, ou que se siga castigo; do contrário, ou Deus não será justo consigo mesmo, ou será impotente para as duas coisas, o que não se pode nem pensar" (Cur Deus Homo I.23) 

O homem é incapaz de realizar satisfação, pois já tem a obrigação de prestar perfeita obediência a lei divina. Por isso, nada do que pode fazer será considerado como recompensa adequada para satisfazer a ofensa que cometeu. Qualquer obediência que ele prestar é considerada apenas o cumprimento do seu dever e, por isso, não pode restituir o dano da sua ofensa. Assim, visto que o pecado é um insulto à honra do Deus infinito, exige-se uma reparação maior do que tudo o que existe na criação. Então, como o pecador não é capaz de oferecer uma satisfação à sua transgressão, ele está debaixo da ira divina que deve lhe impor a penalidade pela ofensa (Ef 2.1-3). 

Todavia, Deus, que é rico em misericórdia, proporcionou uma satisfação. Ninguém, poderia pagar a Deus tudo o que se deve a Ele, pois uma ofensa contra o Criador infinito exige uma reparação infinita. Logo, a reparação deve ser feita pelo próprio Deus que é maior que tudo o que há; mas quem deve cumpri-la é um homem, do contrário, a dívida humana não é satisfeita. Por essa razão, o próprio Deus se fez homem, obedeceu a toda lei divina e ofereceu a si mesmo como sacrifício para satisfazer a justiça outrora violada. Nesse viés, O teólogo luterano J. Gerhard indica que a satisfação de Cristo é de preço e valor infinitos por conta da infinita dignidade de Sua pessoa. Portanto, claramente, ela é suficiente para todos os pecados sem exceção. Desse modo, a morte voluntária do homem inocente, que ao mesmo tempo, é o próprio Senhor da criação, se manifesta como uma oferta de amor tão grande que satisfaz a justiça de Deus, realizando a perfeita propiciação pelos nossos pecados e, assim, Deus é reconciliado com os pecadores. (Colossenses 1.21-22)

Por isso, era necessário que o Salvador fosse 100% Deus e 100% homem, conforme os pais da Igreja os concílios ecumênicos esclareceram. Basílio, por exemplo, enfatiza que se Jesus tivesse uma natureza diferente da nossa, nós que estávamos mortos em Adão, jamais seríamos restaurados em Cristo. E como Anselmo percebeu, apenas Deus poderia oferecer uma satisfação de valor infinito, capaz de remover nossa culpa e nos dar a vida eterna. 

É interessante notar que a necessidade de que o Salvador seja plenamente humano e divino, explicitada por Anselmo em harmonia com os concílios da Igreja, nos ajuda entender a teoria da recapitulação desenvolvida por S. Irineu de Lyon (130-202 D.C). Segundo Irineu, toda a humanidade participa em Adão do seu pecado e, por isso, partilha da sua culpa. 

A essência do pecado de Adão foi a desobediência, pela qual ofendemos a Deus, não cumprindo seu mandamento.  Contudo, analisando Romanos 5, ele entende que Jesus, assim como Adão, abrange toda a raça humana em si mesmo e recapitulou a humanidade perdida neste. Irineu percebe que a essência do pecado adâmico foi a desobediência e que, por isso, a salvação em Cristo viria de sua obediência. 

"Ao destruir a desobediência do homem, realizada primeiramente na árvore, Ele se tornou obediente até a morte, e morte de cruz, curando a desobediência ocorrida numa árvore pela obediência numa árvore (Contra as heresias 5.16.3) 

(Romanos 5.19): "Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos." 

Portanto, Jesus, sendo de fato Deus, se identificou com a raça humana e foi capaz DE AGIR EM FAVOR DELA E EM SEU LUGAR; e a vitória por ele conquistada é um triunfo para todos os que lhe pertencem. Por isso, Irineu diz que Cristo, sendo obediente até a morte, nos reconcilia com o Pai, fazendo propiciação por nós junto a Ele contra quem pecamos. A concepção da obediência de Jesus, contrastando com a desobediência de Adão é fundamental para entender como ocorre nossa satisfação perante a justiça divina. 

A obediência ativa e a obra da cruz

Enquanto a teoria da substituição penal afirma que Jesus sofreu a sentença de ira divina no lugar dos pecadores a fim de livrá-los da punição, a satisfação vicária ensina que Jesus recapitulou a humanidade em si, cumprindo a lei que os homens quebraram e oferecendo a si mesmo como sacrifício para satisfazer a justiça do Pai, transformando a ira em graça. Em síntese, Cristo foi vicariamente obediente, isto é, Ele cumpriu a lei no nosso lugar e, mais do que isso, ofereceu o que tinha de mais valioso no universo, a própria vida. É correto também dizer que Jesus morreu no nosso lugar, dado que a foi obediente até a morte, fazendo desta um sacrifício pelo pecado. Então, o Pai olha para a satisfação de Cristo, para amor que se entrega por pecadores, e se trona propício a nós que antes o ofendemos. Assim, sua justiça é satisfeita e a punição não é mais necessária. 

(Romanos 5.6-10) "Porque Cristo, quando nós ainda éramos fracos, morreu a seu tempo pelos ímpios. Dificilmente, alguém morreria por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém se anime a morrer. Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores. Logo, muito mais agora, sendo justificados pelo seu sangue, seremos por ele salvos da ira. Porque, se nós, quando inimigos, fomos reconciliados com Deus mediante a morte do seu Filho, muito mais, estando já reconciliados, seremos salvos pela sua vida".

Após essa breve exposição da doutrina da satisfação vicária posso partir para o estudo sistemático das proposições bíblicas que sustentam a posição.

Em primeiro lugar, é de suma importância ressaltar o impacto do pecado na humanidade, o qual impossibilitou os homens de, por si mesmos, satisfazerem a justiça divina e encontrarem graça perante Deus. O pecado entrou no mundo por meio de um só homem e, pelo pecado, a morte veio a todos os homens visto que todos pecaram nele (Rm 5.12). Por essa razão o homem está infectado pela natureza pecaminosa e toda a inclinação de seu pensamento está voltada para o mal (Gn 6.5), em pecado somos concebidos (Sl 51.5), não queremos saber da instrução de Deus (Is 30.9) e do nosso coração efluem todo tipo de perversidade (Mc 7.21-23). O homem natural não compreende as coisas do espírito, que lhe parecem loucura (1 Co 2.14). Nenhum homem entende ou busca a Deus verdadeiramente, todos se desviaram (Rm 3.10-12). Não há um justo, nenhum sequer. Todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus (Rm 3.23). 

Além disso, o pecado nos torna escravos dos maus pensamentos e desejos e cativos sob a jurisdição do Diabo (Ef. 2.1-3). Por constituir uma transgressão da lei divina, o pecado é ofensa a honra de Deus, o qual é tão puro de olhos que não pode tolerar a iniquidade (Hc 2.13). Por isso, é incompatível com a justiça de Deus "Esconder o pecado debaixo do tapete" e simplesmente declarar inocente aquele que é ímpio (Pv 17.15), pois ele mesmo estabeleceu uma sentença aos transgressores da sua lei. Então, segue-se a conclusão de Anselmo: ou a dívida do pecado é satisfeita, ou a punição é aplicada. 

Contudo, em virtude dos efeitos do pecado, o homem não pode oferecer uma satisfação devida ao Criador pela sua ofensa. Mesmo que fosse capaz de cumprir toda a lei perfeitamente, isso não seria suficiente, pois estaria apenas cumprindo seu dever. Porém, nem mesmo isso o homem não regenerado é capaz de fazer. (Romanos 8.7-8): "Por isso, o pendor da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem mesmo pode estar. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus." Desse modo, o homem se coloca contra o Deus que ofendeu, e o ofende diariamente não se sujeitando a lei divina e, em razão de estar morto em pecados em transgressões, não é capaz de cumpri-la. Assim, conclui-se que o homem não pode salvar a si mesmo.

É então que conhecemos a profundidade da graça. Por meio de um só, a morte passou para todos os homens, mas por meio de um só homem, o Cristo, a dádiva da graça transbordou para muitos (Rm5.15-16). Como Cristo alcançou essa dádiva para a humanidade? Se fazendo homem e oferecendo uma satisfação de valor infinito para que a penalidade não mais fosse necessária e possamos ter paz com Deus. 

(Romanos 8.3-4): "Porquanto o que fora impossível à lei, no que estava enferma pela carne, isso fez Deus enviando o seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no tocante ao pecado; e, com efeito, condenou Deus, na carne, o pecado, a fim de que o preceito da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito." 

Perceba nesse texto a ênfase na encarnação e na obediência de Cristo como preceito para que a lei se cumprisse em nós. Essa ênfase na obediência é desatacada ainda mais claramente em filipenses 2 que ressalta a humildade e obediência de Jesus que, sendo Deus, se esvaziou, tornando-se obediente até a morte e morte de cruz! Desse modo, em contraste com a substituição penal, a doutrina da satisfação vicária concede maior importância a encarnação, ao estado de humilhação e ao perfeito cumprimento vicário da lei por parte do Salvador.

Para que isso fique mais claro, é importante compreender o conceito de obediência ativa. A obediência ativa de Cristo é seu fiel cumprimento a todos os requisitos da lei de Deus com sua completa liberdade do pecado. Jesus, mediante sua obediência, foi nosso substituto, cumprindo a lei em nosso lugar. Mesmo Calvino, o mais célebre defensor da substituição penal, chegou a declarar: "Quando se pergunta como, cancelados os pecados, Cristo tenha removido o antagonismo existente entre nós e Deus, e adquirindo a justiça que o fizesse benévolo a nós, pode-se responder, de modo geral, que isto ele conseguiu mediante todo o curso de sua obediência."

A obediência de Jesus em nosso lugar produziu méritos infinitos que nos são creditados pela fé. De mãos vazias, cientes de que não podemos oferecer nenhuma satisfação, confiamos em Deus que é, ao mesmo tempo justo e justificador e que, por graça, nos concede o Dom da fé, pelo qual a promessa do evangelho chega até nós, e a obediência de Cristo nos é imputada como Justiça. Pois o fim de da Lei é Cristo, isto é, sua completude, e por meio de sua obra de obediência e sacrifício ele consumou a nossa justificação quando recebemos os seus méritos pela fé (Rm 10.4)

Nesse sentido, sendo o segundo Adão e representante da humanidade, a obra de Cristo tem extensão universal. Porém, existe uma diferença entre a reconciliação objetiva e reconciliação subjetiva que nos ajuda a entender como os méritos de Cristo chegam até nós. Objetivamente, Jesus cumpriu perfeitamente a lei no lugar de todos e se entregou como oferta pelos pecados dos homens, satisfazendo a justiça divina e adquirindo méritos suficientes para dispensar à todas as pessoas. Subjetivamente, os méritos alcançados na cruz devem ser recebidos através de meios, a fé e os sacramentos. Por isso, nem todos recebem da graça dispensada, visto que não possuem a via receptiva que é o dom da fé que Deus concede.

Exemplificando isso e condensando o assunto, veja esta belíssima exposição das confissões luteranas sobre o assunto:

 "[..] A justiça, que diante de Deus é atribuída pela fé, por mera graça, é a obediência, o sofrimento e a ressureição de Cristo, já que ele satisfez a lei por nós e pagou pelos nossos pecados. Pois Cristo é Deus e homem, em uma pessoa indivisa, e tão pouco esteve sob a lei- Porquanto é senhor da lei- quão pouco teve de sofrer e por sua pessoa. Por essa razão, sua obediência não só no sofrer e morrer, mas também nisso de que, voluntariamente, foi posto sob a lei em nosso lugar e a cumpriu, essa obediência nos é creditada como justiça. Desse modo, por causa dessa obediência integral que ele prestou ao Pai por nós, no fazer, no sofrer e no morrer, na vida e na morte, Deus nos perdoa os pecados, nos reputa por piedosos e justos e nos salva eternamente. Essa justiça nos é oferecida pelo Espírito Santo no evangelho e nos sacramentos, e aplicada, sendo tornada nossa pela fé, de onde os crentes tem a reconciliação com Deus, o perdão de pecados, a adoção como filhos e a herança da vida eterna." (Declaração sólida, fórmula de concórdia)

Se Cristo carregou os nossos pecados, ele também não teve de carregar a nossa culpa e, por conseguinte, nossa penalidade?

Essa objeção leva em consideração textos como: "O senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós (Is 53.6): "Ele mesmo levou em seu corpo nossos pecados sobre o madeiro, a fim de que morrêssemos para os pecados e vivêssemos para a justiça; por suas feridas vocês foram curados" (1 Pedro 2.24) e "Em Cristo não havia pecado, mas Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado, para que, assim, fossemos feitos justiça de Deus (2 Co 5.21), para fundamentar a ideia de que a culpa das nossas transgressões foi passada para Cristo que suportou o castigo divino devido às nossas iniquidades.

Bem, não se pode negar textos explícitos. Cristo realmente levou em seu corpo nossos pecados, os quais foram imputados a ele. Todavia, não se segue daí que ele tenha se tornado culpado e sujeito a penalidade, pois, mesmo carregando em seu corpo todos os pecados do mundo, foi capaz de oferecer ao Pai tamanha satisfação, que a punição já não foi mais necessária. Conforme dito por S. Anselmo, só há punição quando uma satisfação não é oferecida. Uma só gota daquele precioso sangue era capaz de redimir o mundo inteiro, mas ele quis derramar tudo. Jesus decidiu ir até o fim. Não só suportar a humilhação de esvaziar em forma de servo, mas de oferecer ao Pai o que há de mais valioso no universo, a sua própria vida. Um sacrifício de tamanho valor, ligado a infinidade de sua pessoa, é capaz de cobrir qualquer culpa, satisfazendo a justiça divina e convertendo sua justa ira sobre nós em graciosa reconciliação. 

Como diz Lutero: "Ele possui e carrega todos os pecados de todas as pessoas em seu corpo- não no sentido que ele os cometeu, mas no sentido de que ele os assumiu a fim de fazer satisfação por eles com seu próprio sangue- (...) por meio de sua morte, Ele fez satisfação pelo pecado e por meio da ressureição ele nos concedeu justiça. Assim, sua morte não significa apenas a remissão de pecados, ela também conquista a satisfação completamente suficiente. Sua ressurreição não é apenas o sacramento da nossa justificação, ela efetua essa justiça em nós se vivemos nela." (LW 25:284)

Também é correto dizer que Cristo pagou a nossa dívida. Contudo, ele não pagou nossa penalidade, de modo a receber o castigo que nos cabia. Quando a bíblia diz que o castigo que nos traz a paz estava sobre ele (Is 53.5), não se refere ao nosso castigo penal, afinal este era eterno, mas sim um castigo que Deus determinou para ser executado pelos flagelos e a agonia da cruz infligida pelos romanos. "...A este, conforme o plano determinado e a presciência de Deus, vocês mataram, crucificando-o por meio de homens maus "(At 2.23). Por isso, a dívida foi paga como uma fiança, não requerida de nós, mas oferecida por Cristo, como mostra brilhantemente a primeira homilia da justificação da Igreja Anglicana:

"Ele demonstrou sua misericórdia em nos livrar do antigo cativeiro, sem requerer qualquer fiança paga da nossa parte, tal coisa que era impossível ser realizada por nós. E enquanto não exigiu da nossa parte o fazer disto, proveu para nós uma fiança, e esta era o mais precioso corpo e sangue do seu querido Filho, Jesus, que além de Sua fiança, cumpriu a lei por nós perfeitamente. Então, a justiça de Deus e sua misericórdia se abraçaram e cumpriram o mistério da nossa redenção."

Se cristo fez satisfação por todos os pecados e o problema da morte

Alguns teólogos católicos romanos propuseram a ideia de que Cristo não fez satisfação por todos os nossos pecados, mas tão somente pelo pecado original. Quanto aos outros pecados, ele capacitaria os homens pela graça que, cooperando com ela, deveriam oferecer satisfação para os pecados atuais. Nas palavras do escolástico Boaventura: "Em relação ao pecado atual, um homem puro, ajudado pela graça, pode fazer satisfação, mas apenas uma satisfação semi-completa, que recebe suplemento e cumprimento da Paixão de Cristo" (Sent., 3, dist. 20, q.3). e ainda do teólogo Andrea Vega, destaque no concílio de Trento que disse explicitamente: "Os méritos de Cristo não merecem o título de perfeita satisfação" (In Concil. Trid., vol1, fol. 141).¹

Contudo, são abundantes as provas bíblicas e patrísticas de que Cristo satisfez não apenas o pecado original, mas todos os pecados atuais. Um exemplo disso é a famosa exclamação de João Batista que diz "Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo!" Com isso, ele não quis dizer que o cordeiro tira apenas o pecado original do mundo, mas todos os pecados. Gerhard vai comentar que, aqui, o pecado é dito no singular, podendo ser entendido de modo universal: tudo que possui a natureza de pecado, toda a massa de pecado, a escória de todos os vícios do mundo foi transferida para Cristo, e quitada por Ele."² Não obstante, Agostinho é enfático ao dizer que Em Cristo, em quem todos somos justificados, recebemos a remissão dos pecados, e não apenas do original, mas também de todo o resto que acrescentamos a ele" (De peccat. remissione, ch.13); e ainda: "Pelo derramar de Seu sangue sem culpa, o escrito de todas as faltas foi apagado" (De peccat. remissione, bk.2, ch.20). 

Entretanto, os adversários argumentam dizendo que a satisfação não pode estar completa, dado que somos punidos diversas vezes durante a vida. Respondemos essa objeção afirmando que se estamos na fé, em perfeita união com Cristo, não estamos sendo punidos. Ao contrário, como diz S. João Crisóstomo em uma homilia sobre I Coríntios "Quando o Senhor nos corrige, é mais para admoestação do que para condenação, mais para remédio do que para punição, mais para correção do que para penalidade" e "Onde há misericórdia não há lugar para punição." Por isso, os males que nos acontecem não podem ser considerados punições divinas, mas admoestações visando nossa correção e aperfeiçoamento. Portanto, nem mesmo a morte dos crentes pode ser considerada uma punição pelo pecado, pois como diz Tertuliano "uma vez que a culpa é removida a punição também é removida."  Essa culpa foi expiada por Cristo, o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.

Desse modo, admitindo meu erro nos silogismos do texto anterior, nem toda morte é penalidade do pecado, dado que os crentes, em Cristo tiveram sua culpa removida e não estão debaixo de punição, mas mesmo assim, enfrentam a morte física. Por isso, todo o argumento elaborado na defesa da SP (que Jesus teria morrido, portanto, pago a penalidade do pecado que é a morte) desaba. Se nem toda morte é resultado de punição, a morte de Cristo não implica em penalidade sentenciada pelo Pai, mas sim em uma oferta voluntária da própria vida para fazer satisfação pelos nossos pecados, nos libertar do cativeiro das forças demoníacas e nos reconciliar com o Criador. 

Portanto, mediante essa morte, Jesus faz completa satisfação por todos os pecados do mundo. Supor, como fizeram os teólogos papistas, que ele nos habilita a cooperar para produzirmos nossa satisfação, implica em dizer que nunca podemos ter certeza se estamos plenamente reconciliados com Deus ou não. Na verdade, essa certeza é anatematizada pelo concílio de Trento. Porém, como diz Gerhard, a bíblia nos adverte a confiar plenamente em cristo para salvação, pois só em perfeita confiança existe a verdadeira paz. 

"Se nossas satisfações são requeridas para nossa reconciliação com Deus, jamais seríamos capazes de estar certos sobre nossa reconciliação. Em vez disso, seríamos agitados por um dilúvio constante de dúvidas, pois jamais saberíamos quando Deus estaria suficientemente satisfeito pela nossa cooperação. Mas o apóstolo declara o oposto em Rm 4:16: 'Portanto, provém da fé, livremente, para que a promessa fique firme', e em Rm 5:1: 'Justificados pela fé, temos paz com Deus por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo'" (Loci Theologici XVIII). 

conclusão

Depois de ter exposto a doutrina, bem como os argumentos que a fundamentam, termino com um breve comentário sobre o assunto. A doutrina da satisfação vicária é de peculiar importância, pois enfatiza toda obra de Cristo, do começo ao fim: a encarnação, o estado de humilhação, a obediência à lei, a morte como sacrifício expiatório e a ressurreição como vitória sobre a morte e os poderes das trevas. Além disso, ela nos dá a certeza de que somos pecadores miseráveis, incapazes de satisfazer a justiça divina e, por isso, estamos debaixo da justa penalidade por nossa ofensa. Todavia, a graça de Deus é revelada quando ele mesmo proporciona uma satisfação que é o próprio Deus encarnado. Esse Deus, Jesus Cristo, cumpriu a lei que eu não consegui cumprir e entregou a si mesmo para morrer no meu lugar e, assim, ofereceu o que de mais precioso há no universo para, então, satisfazer a justiça do Pai, transformando a ira em graça e nos reconciliando com ele. 

Ademais, essa alegre troca, possibilitou que, pela fé, os méritos de Cristo me fossem imputados como justiça, me absolvendo do pecado, tirando minha culpa e me fazendo filho de Deus. 

"O pobre pecador é justificado diante de Deus, isto é, absolvido de todos os seus pecados e da merecida sentença de condenação [..] sem qualquer mérito ou dignidade da sua parte. Também sem quaisquer obras antecedentes, presentes ou subsequentes. Tão só por graça. Exclusivamente por causa do mérito da obediência integral, do sofrimento amargo, da morte e ressurreição de Cristo, cuja a obediência nos é atribuída como Justiça". (Fórmula de concórdia, declaração sólida III.9)

(Romanos 5.1-2) Tendo sido, pois, justificados pela fé, temos paz com Deus, por nosso Senhor Jesus Cristo, por meio de quem obtivemos acesso pela fé a esta graça na qual agora estamos firmes; e nos gloriamos na esperança da glória de Deus. (Romanos 8.1): 'Portanto, agora já não há condenação para os que estão em Cristo Jesus." (Apocalipse 5.9-10):"'e eles cantavam um cântico novo: 'Tu és digno de receber o livro e de abrir os seus selos, pois foste morto e com teu sangue compraste para Deus gente de toda tribo, língua, povo e nação. Tu os constituíste reino e sacerdotes para o nosso Deus, e eles reinarão sobre a terra.'" 

Que essa certeza inunde seu coração: Cristo disponibiliza sua justiça para nós gratuitamente. Ao reconhecermos nossa impotência e colocarmos nossa total confiança na sua obra, seus méritos nos são creditados como justiça. Somos, então, perdoados, remidos, libertos, absolvidos e adotados pelo Deus gracioso que tanto nos amou.


1. Instituto areté pg 2 "Podemos fazer alguma satisfação pelos nossos pecados?"(II)

2. Instituto areté pg3 "Podemos fazer alguma satisfação pelos nossos pecados?" (III)

Mateus Magalhães
Desenvolvido por Webnode
Crie seu site grátis! Este site foi criado com Webnode. Crie um grátis para você também! Comece agora