É possível ter certeza de salvação?

30/01/2022

introdução

O presente artigo é uma síntese dos argumentos do teólogo luterano J. Gerhard contra o cardeal católico Belarmino, o qual, em conformidade com o concílio de Trento (Ss. 6, cânone 16), defendeu que o homem não pode ter a certeza absoluta da salvação, exceto por revelação especial de Deus ou que essa certeza deveria estar condicionada a recepção, disposição ou cooperação humana e que, por isso, era correto ter insegurança da própria absolvição para que o temor levasse a santidade. Nas palavras do próprio Belarmino (De justif., 1, ch. 10):

"As pessoas não podem acreditar que seus pecados foram perdoados com base na Palavra de Deus, salvo muito precipitadamente; pois em nenhum lugar da Palavra de Deus é encontrado que a salvação ou o perdão de pecados foram anunciados a mim ou a alguém em particular, exceto a alguns poucos"

E ainda, nas palavras de Costerus, teólogo romano pós tridentino (Enchirid., ch. de åde, p. 204): "A Escritura testifica a incerteza da [nossa] justificação." "Cristo não deseja que tenhamos a certeza da fé sem nenhuma dúvida."

A essas objeções, Gerhard responde listando algumas razões pelas quais, apesar de não ser possível averiguar quem faz parte dos eleitos, é possível, como claramente demonstrado nas Escrituras, ter a certeza da remissão de pecados e da nossa reconciliação com Deus. Entre essas razões pode-se citar: (I) pela natureza do que é a fé; (II) pela firmeza das promessas e infalibilidade daquele que prometeu; (III) pelos benefícios dos sacramentos; (IV) pelo testemunho do Espirito Santo e, por fim, adiciono ainda mais uma razão: (V) o propósito da predestinação.

Como diz o apóstolo, a fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que não se veem (Hb 11.1). Por fé, entende-se ὑπόστασις ["substância"], πληροφορία ["plena segurança"], πεποίθησις ["certeza"] e παρρησία ["confiança"]. Portanto, se a fé exprime uma certeza, e a promessa de salvação é apreendida pela fé, conclui-se, então, que a promessa da fé é certa, digna de perfeita confiança e nenhuma ambiguidade, pois como diz S. Basílio: "Não deve haver nenhuma hesitação ou dúvida sobre as coisas que o Senhor diz. Pelo contrário, cada palavra de Deus deve ser considerada verdadeira e poderosa." Dito isso, observe agora a relação da natureza da fé com o segundo tópico

2. Pela firmeza das promessas e infalibilidade daquele que prometeu

Este argumento se baseia da imutabilidade das promessas divinas. O evangelho mostra que Deus quer receber aquele que se arrepende e crê em Cristo para o perdão de seus pecados (Lc 15.10) e Ele também prometeu que todo aquele que crê em Jesus tem a vida eterna (Jo 3.36). Com efeito, se o Deus que prometeu sua graça e a remissão de pecados é fiel e confiável, então, ele não pode mentir e, por isso, as promessas divinas são firmes e dignas de plena confiança. Pois, Deus não é homem para que minta, nem filho de homem para que se arrependa (Num 23.9), mas quem não crê em Deus o faz de mentiroso porque não crê no testemunho de seu Filho (1 Jo 5.10) que nos dá a promessa de remissão de pecados. Disso segue-se assim:

p1. Deus prometeu a vida eterna a todo aquele que crê (Jo 3.36)

p2. as promessas de Deus são infalíveis, pois ele não pode mentir (Num 23.9)

C. Logo, podemos ter a plena certeza da vida eterna, pois o Deus que a prometeu é fiel para cumprir. Caso contrário, se não tivéssemos certeza das suas promessas, estaríamos fazendo Deus de mentiroso e condenando a nós mesmos (1 Jo 5.10)

Ademais, é mister ressaltar as diferenças entre as promessas da lei e as promessas do evangelho. As promessas da Lei deixam as consciências duvidosas e incertas, uma vez que eles têm a condição adicional de obediência perfeita. Visto que isso não se encontra em nós, as promessas da Lei tornam-se, assim, incertas. Mas as promessas do Evangelho são gratuitas e ensinam-nos a confiar não em nossos méritos e obras, mas somente em Cristo. "Portanto, é pela fé, gratuitamente, para que a promessa seja firme" (Rm. 4:16).

Além disso, a infalibilidade das promessas nos garante a certeza de sua aplicação, pois Cristo prometeu e até interpôs um juramento que Ele nos daria tudo o que pedíssemos ao Pai em Seu nome (Mateus 18:19; 21:22; João 16.23) e, tudo o que fosse pedido de acordo com a sua vontade, seria ouvido pelo Pai e graciosamente dado a nós (1 Jo 5.14-15). Não obstante, Ele mesmo nos ensinou a pedir ao Pai o perdão de pecados em seu nome (Mt 6.12). Portanto segue-se que

p1. Jesus jurou que tudo o que pedíssemos, de acordo com a sua vontade e em seu nome, nos seria dado (Jo 16.23, 1 Jo 5.14-15)

p2. Ele mesmo nos ensinou a orar pedindo a remissão dos nossos pecados (Mt 6.12), denotando que essa é sua vontade

p3. Jesus é Deus e não pode mentir

C. Logo, toda vez que pedimos, em Seu nome, o perdão dos nossos pecados, podemos ter a certeza de que eles nos são graciosamente perdoados.

Ora, se a justificação é a remissão de pecados, logo, podemos ter a certeza de que somos justificados na confiança das promessas divinas. Portanto, como diz S. Hilário de Potiers (Comentário a Mateus, cânon 5): "Nosso Senhor quer que esperemos o reino dos Céus que está nele com confiança e sem qualquer ambiguidade. Caso o contrário, se a fé fosse ambígua, a justificação não seria pela fé". E essa é a razão pela qual a promessa [da justificação] provém da fé, para que seja segundo a graça e, assim a promessa seja firme (Rm 4.16). Como salienta S. Ambrósio interpretando o contexto do verso em questão: "Ele está exortando os gentios a esta mesma firmeza da fé para que eles possam receber a promessa gratuita de Deus sem qualquer indecisão, seguro no exemplo de Abraão."

Desse modo, conclui-se com o seguinte silogismo:

p1. Deus é fiel em todas as suas promessas

p2. A promessa de justificação provém da fé (Rm 4.16) e é recebida pela fé (Rm 4.2)

p3. A fé é a CERTEZA das coisas que se esperam (Hb 11,1)

C. logo, a fé recebe com certeza e segurança a promessa daquele que é fiel para cumprir tudo o que prometeu.

3. Pelo benefício dos sacramentos

Os sacramentos foram instituídos com a finalidade de comunicar a graça salvadora de modo objetivo e seguro. Como diz Gerhard, Deus não nos prometeu Sua graça apenas em Sua Palavra, mas também acrescentou os Sacramentos a esta promessa para que fossem os selos da promessa de graça oferecida na palavra do Evangelho, bem como a meios para produzir, nutrir e fortalecer a fé pela qual pode-se afirmar com certeza que os benefícios de Cristo pertencem a nós individualmente. Assim, o batismo e a santa ceia confirmam a aplicação da promessa em nosso caso individualmente para que tenhamos a certeza de que recebemos a graça da remissão de pecados e fomos unidos com Cristo na igreja (Gl 3.27).

Além disso, os sacramentos não apenas nos dão a certeza do início da caminhada cristã, mas são os meios pelos quais Deus preserva seus eleitos na fé verdadeira até o fim, de modo que não olhamos para as nossas próprias obras ou cooperação com a esperança de permanecer na graça, mas confiamos no agir de Deus que nos faz perseverar, dando-nos continuamente o perdão de pecados e o amor mediante a palavra e os sacramentos que, por sua vez, não dependem de algo em nós, mas agem pela promessa divina. Toda vez que vamos à confissão de pecados com o coração contrito, os benefícios da promessa batismal se renovam em nossas vidas, assim, o ofício das chaves nos leva de volta à remissão de pecados prometida no santo batismo.

4. Pelo testemunho do Espírito Santo

Deus não apenas dá testemunho exterior em Sua Palavra sobre Sua graça que é prometida aos que creem, mas também lhes concede o Seu Espírito Santo, que "testemunha ao nosso espírito que somos filhos de Deus" [Rm. 8:16]. "Porque vocês são filhos, Deus enviou o Espírito de Seu Filho aos vossos corações, clamando: 'Abba, Pai'" (Gl 4:6). "Recebemos o Espírito que é de Deus, para que possamos compreender os dons que Deus nos concedeu" (1 Cor 2:12). "É Deus que nos fortalece convosco em Cristo e que nos ungiu. Ele colocou Seu selo sobre nós e nos deu Seu Espírito em nossos corações como garantia" (2 Cor 1:21-22). "Crendo, você foi selado com o Espírito Santo da promessa, que é a garantia da nossa herança" (Ef 1:13-14). "Não entristeçais o Espírito Santo, no qual fostes selados para o dia da redenção" (Ef 4:30).

Ora, como os textos poderiam ser mais claros? Deus não apenas perdoou nossos pecados, removendo a nossa culpa, mas também nos adotou como filhos, colocando em nós o Espírito de adoção que testifica aos nossos corações que somos filhos de Deus. Ser filho denota intimidade, livre acesso à graça e a certeza do amor do Pai. Temos a certeza de que recebemos o Espírito de Deus, pois a palavra é o ministério do Espírito e o Espírito é recebido pelo ouvir da fé (Gl 3.2). O Espírito dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus" [Rm. 8:16]. Portanto, não é por uma certeza moral nem por uma opinião conjectural, mas pelo testemunho do Santo próprio Espírito que os crentes sabem que são filhos de Deus. "Se recebemos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é maior" (1João 5:9). Assim, segue-se assim:

p1. O Espírito Santo testifica aos nossos corações que somos filhos de Deus (Rm 8.16)

p2. O Espírito Santo nos selou e nos tornou filhos de Deus quando cremos (Ef 1.13-14)

p3. O Espírito Santo é Deus, e Deus não mente (Num 23.9)

C1. Portanto, pela fé, nós temos a certeza de que Deus nos selou e, em amor nos adotou como filhos.

p4. Deus não nos deu um Espírito de medo, mas de poder, de amor e moderação (2Tm 1.17)

p5. Não existe amor no medo, pois o perfeito amor lança fora o medo (1 Jo 4.18)

C. Portanto, não devemos temer um duvidar da nossa reconciliação com Deus, visto que nos foi dado um Espírito de amor e o amor não coexiste com o medo e a hesitação.

5. Do propósito da predestinação

A fórmula de concórdia, no epítome XI, dissertando sobre a doutrina da predestinação adverte que essa doutrina não deve ser utilizada para apavorar as consciências, mas para nos dar a firme certeza de que a eleição de Deus está alicerçada de modo que as portas do inferno não prevalecerão sobre ela. É porque Deus predestinou sem previsão de méritos, antes mesmos de praticarmos qualquer obra boa ou má (Rm 9.11), mas gratuitamente, segundo o beneplácito da sua vontade (Ef 1.5), que temos a segurança de que nossa eleição não está condicionada a nós, mas é obra de Deus. Ora, se Deus é infalível em seus propósitos e imutável em suas decisões, certamente não deixará que seus eleitos se percam. Jesus ilustra esse ensino no evangelho quando diz: "Todo aquele que o Pai me dá, esse virá a mim; e o que vem a mim, de modo nenhum o lançarei fora." (Jo 6.37).

É por essa, razão, portanto, que S. Paulo argumenta em Romanos 8 que "aqueles que Deus predestinou; a esses chamou, e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou." Note o uso do passado profético para se referir a algo certo e indubitável. Por isso, ele diz que nenhuma acusação pode ser intentada contra os eleitos de Deus, pois é o próprio Deus quem os justifica (v 33), assim, não resta mais condenação para os que estão em Cristo Jesus (v 1). Ora, se sabemos que estamos em Cristo quando cremos que ele é o Filho de Deus e nosso salvador e, em amor praticamos seus mandamentos (1 Jo 4.15), não devemos ter dúvidas ou hesitações de que não resta mais condenação sobre nós. Desse modo, Paulo termina o capítulo com uma belíssima sentença que denota a segurança naquele que o chamou. "Pois, eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá nos separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor" (Rm 8.38-39)

Conclusão

Com uma breve síntese dos argumentos de Gerhard, busquei expor alguns pontos que sustentam a posição de que podemos ter a plena segurança de que, por causa da satisfação de Cristo, somos reconciliados com Deus e temos toda a confiança que nossos pecados foram perdoados em seu nome. Ainda poderia ser objetado com a consideração de que a incerteza não estaria no Deus que prometeu, mas na disposição humana para receber a promessa tendo em vista sua fraqueza e necessidade de cooperação com as suas satisfações temporais, mas, a isso, o próprio Gerhard responde com maestria:

"Se as nossas satisfações são requeridas para a nossa reconciliação com Deus, jamais seríamos capazes de estar certos sobre a nossa reconciliação. Em vez disso, seríamos agitados por um dilúvio de dúvidas, pois jamais saberíamos quando Deus estaria satisfeito pelas nossas punições. Mas o apóstolo declara o oposto em Rm 4.16: 'Portanto, provém da fé, livremente, para que a promessa fique firme', e em Rm 5.1: 'Justificados pela fé, temos paz com Deus por intermédio de nosso Senhor Jesus Cristo."

Termino, então, com esse belíssimo versículo que resume tudo o que foi abordado nesse artigo:

"Portanto, meus irmãos, tendo ousadia para entrar no Santuário, pelo sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que ele nos abriu por meio do véu, isto é, pela sua carne, e tendo um sumo-sacerdote sobre a casa de Deus, aproximemo-nos com um coração sincero, em plena certeza de fé, tendo o coração purificado da má consciência e o corpo lavado com água pura. Guardemos firme a confissão da esperança, sem vacilar, pois, quem fez a promessa é fiel." (Hb 10.19-23)

Mateus Magalhães
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