Como o Luteranismo confessional interpreta Tiago 2 e a relação entre fé e obras?

13/10/2021

O livro de Tiago esteve no centro das discussões no período da Reforma. Lutero e os reformadores, para defender a doutrina da sola fide, tiveram que lidar com grandes objeções de seus opositores que se centravam, principalmente, nessa curta e polêmica epístola. Nesse prisma, utilizando das confissões, da exegese do livro e do paralelismo bíblico, buscarei, no presente artigo, demonstrar as respostas do luteranismo confessional frente às objeções levantadas à doutrina evangélica da justificação pela fé somente.

Indubitavelmente, todos os que leem a epístola de Tiago após conhecer as cartas paulinas se surpreendem com uma aparente contradição no que tange a doutrina da justificação. Enquanto S. Paulo chega a dizer que "Bem aventurado o homem a quem Deus credita justiça independentemente das obras", usando o exemplo de Abraão (Rm 4.5-6), Tiago, usando o mesmo exemplo, diz que "o homem é justificado pelas obras, e não somente pela fé" (Tg 2.24). Mas, então? Será que a bíblia se contradiz? Como resolver essa aparente contradição?

Como buscarei demonstrar aqui, Paulo e Tiago falam de coisas distintas, para públicos distintos e com propósitos distintos. Os primeiros capítulos da epístola de Paulo aos romanos dissertam sobre aspectos soteriológicos, do homem para Deus. Já a carta de Tiago se preocupa com aspecto eclesiológico mais prático, visto que, por toda a obra, Tiago orienta sobre princípios práticos da vida em comunidade (Cuidado para com os oprimidos no cap 1, contra acepção de pessoas no cap 2, controle da língua no Cap 3, confissão mútua e oração pelos outros no Cap 5). Por essa razão, como pretendo demonstrar, S. Paulo está preocupado com a posição do homem diante de Deus, enquanto S. Tiago se ocupa com a posição dos cristãos frente a comunidade e suas necessidades.

Dito isso, podemos prosseguir para a análise do texto em questão. A partir do verso 14, Tiago usa da retórica para questionar a atitude negligente e hipócrita de pessoas que reivindicavam ter fé em Cristo, mas não se prontificavam a ajudar os necessitados, concluindo que a fé sem obras é morta e incapaz de salvar (V. 17). Então, ele compara essa declaração de fé com a crença dos demônios. Até mesmo os demônios acreditam que existe um só Deus, mas será que isso os salva? Perceba que Tiago aqui usa uma definição de fé diferente da definição paulina. Enquanto Paulo usa o termo fé (pistis) com o sentido de fidutia ou confiança, Tiago, ao usar a comparação da declaração hipotética com a fé dos demônios, usa o termo "fé" com o sentido de crença cognitiva, algo como "Eu acredito que Deus existe e que Jesus morreu na cruz". Em contraste com a fé salvífica que é um dom de Deus, a "fé" que Tiago expõe e diz ser insuficiente é uma compreensão intelectual que até mesmo os demônios possuem. Assim, Tiago conclui que a mera crença na existência de Deus não tem poder para salvar, pois é inútil e inoperante (V.20).

Outrossim, Tiago chega ao clímax do seu argumento ao fazer uma conexão do verso 18 "Mas alguém dirá: Eu tenho fé, tu tens obras; mostra-me essa tua fé sem obras, e eu o mostrarei, com obras, a minha fé" com o exemplo do patriarca Abraão "Não foi por obras (quando se dispôs a oferecer seu filho, Isaque), que Abraão, o nosso Pai, foi justificado?" (V. 21) para, então, concluir que "o homem é justificado por obras e não somente pela fé" (V.24). Devo reconhecer que estamos diante de um texto difícil. Entretanto, se analisado a luz do verso 18, a sentença do verso 23 "para que se cumprisse a escritura: 'Abraão creu, e isto lhe foi imputada justiça'" começa a fazer sentido.

Tiago cita Gn 15.3 ao falar da justiça imputada de Abraão. O interessante aqui é a obra citada, o sacrifício de Isaque, só acontece no Cap 22. Ou seja, Abraão já era reputado justo antes de oferecer Isaque sobre o altar. Isso aponta para o que destacado no versículo 18, que, uma declaração de fé vazia, a qual não opera obras, não representa uma fé genuína e salvífica, mas a fé que salva é reconhecida pelas obras que a testificam. Por essa razão, ele cita a obra de Abraão que sucedeu a fé que o justificou, para que, com o exemplo do patriarca, a audiência de Tiago entendesse que a verdadeira fé só existe acompanhada de obras.

Contudo, ainda fica a questão "então por que Tiago disse que somos JUSTIFICADOS por obras e não somente pela fé?" Novamente, eu vou apelar para o aspecto linguístico. Assim como Tiago usa o termo "fé" diferentemente de Paulo, ele também usa o termo "justificado" de modo distinto. O termo "justificado" (dikaioó) significa "reputado justo" ou "declarado justo", porém, ele também pode significar algo como "demonstrou ser justo" ou "reconhecido como justo". Portanto, enquanto Paulo usa dikaioó no primeiro sentido em romanos, Tiago usa a mesma palavra no segundo sentido na sua epístola.

Desse modo, o homem é justificado (reconhecido justo) pelas obras (2.24), ou seja, as obras justificam o seu estado de justiça diante do mundo. Isso fica evidente na carta, pois o próprio Tiago indica usar esse sentido do termo ao conectar 3.13 "Quem entre vós é sábio e inteligente? Mostre em mansidão de sabedoria e condigno proceder, as suas obras" com o dito de Jesus em Mateus 11.19 "Mas a sabedoria é justificada por suas obras." E ainda relacionando (Tg 3.11-12): "Por acaso pode a fonte jorrar do mesmo lugar água doce e água amarga? Meus irmãos, será que a figueira pode produzir azeitonas ou a videira, figos? Assim, também, uma fonte de água salgada não pode dar água doce." com (Mt 12.33-37) "Tornem a árvore boa e o seu fruto será bom, ou tornem a árvore má e o seu fruto será mau; porque pelo fruto se conhece a árvore. (...) A pessoa boa tira do tesouro bom coisas boas; mas a pessoa má do mau tesouro tira coisas más. A boca fala o que o coração está cheio. - Digo a vocês que, no Dia do Juízo, as pessoas darão conta de toda palavra inútil que proferirem; porque, pelas suas palavras, você será justificado e, pelas suas palavras, você será condenado."

Assim sendo, é nítido que essa linguagem explorada por Tiago a partir do evangelho de Mateus se encontra por toda Escritura. Nesse viés, após utilizar os 5 primeiros capítulos de Romanos para explicar a justificação pela fé, Paulo se depara com a objeção de que essa doutrina tornaria inútil a prática das obras da lei. É interessante que ele não responde que até determinado ponto uma pessoa é justificada pela fé somente e depois por uma cooperação entre fé e obras, ao contrário, ele argumenta que sepultados com Cristo no batismo, morremos para a velha vida e, mortos para ela, estamos justificados do pecado. E então, quando nascemos de novo em Cristo (Rm 6.6), e dele nos revestimos (Gl 3.27), na novidade de vida, não somos mais escravos da lei que nos subjuga, mas servos de Deus, debaixo da graça. Agora, como servos de Cristo, frutificamos na santificação (Rm 6.22). Esses são os frutos de uma vida renovada por Espírito (Gl 5.22-25) contrastando com as obras da carne (5.19-21), ou frutos da morte (Rm 7.5). Portanto, assim como os frutos não fazem a árvore boa, mas a boa árvore dá fruto, assim também as boas obras não fazem alguém justo, mas o justo pratica boas obras e é reconhecido por elas, pois o justo é o que pratica a justiça (1 jo 3.7)

Não obstante, Jesus disse em Jo 15 que ele é a videira e, nós, os ramos. Nenhum ramo dá fruto por si mesmo, mas unidos com ele, pela fé, damos frutos. Porém, todo ramo que não dá frutos, não está nele (V.6). A fé sem obras é morta por que ela não está unida à videira e, por isso, não frutifica. A árvore é reconhecida pelo seu fruto (Mt 12.34), por essa razão, quem nasceu da água e do Espírito, dá frutos do Espírito. Só somos justos quando estamos em Cristo porque Ele é a nossa justiça (1 Co 1.30) e somente estando nele, podemos ser ramos que dão bons frutos. Como diz Lutero, assim como só há fumaça onde há fogo, só há fé onde existem obras que a testifiquem.

Desse modo, sabemos que estamos em Cristo, por que fomos unidos com ele no batismo (Rm 6.4-6), enxertados na videira (Rm 11) e permanecemos nele pela confiança de que Ele é o Filho de Deus, nosso salvador (1 Jo 4.15). Aquele que ama a Jesus, obedece aos seus mandamentos (Jo 14.21) e quem diz que permanece nele, deve andar como ele andou (1 Jo 2.6) pela fé que opera pelo amor (Gl 5.6).

"Desse modo, ensina-se ainda que essa fé deve produzir bons frutos e boas obras, e que, por amor de Deus, deve-se praticar toda sorte de boas obras por ele ordenadas, não se devendo, porém, confiar nessas obras, como se por elas merecessem graça diante de Deus. Pois é pela fé em Cristo que recebemos perdão dos pecados e justiça. como diz o próprio Cristo: 'Depois de haverdes feito tudo isso, deveis dizer: Somos servos inúteis'. Assim também ensinam os Pais. Pois Ambrósio diz: 'Assim está estabelecido por Deus que aquele que crê em Cristo é salvo, e tem a remissão dos pecados não por obras, mas pela fé somente, sem mérito'." (Confissão de Ausburg, Art VI)

Portanto, entendemos que o homem é justificado pelas obras diante do mundo (Coram mundo), isto é, é reconhecido justo, pois suas obras justificam sua nova identidade dada gratuitamente pela fé (fidutia), a qual nos justifica diante de Deus (Coram Deo) como um presente divino (Rm 3.24). Assim como eu justifico a minha pregação com a minha conduta, as obras justificam que minha fé é viva e verdadeira. As obras não nos justificam diante de Deus, no sentido de que elas nos dão o status de justos perante Ele, pois a remissão de pecados, a regeneração e a nova vida são recebidas apenas em virtude da promessa de Deus em Cristo, que é nossa sabedoria, justiça, santificação e redenção, para que, como está escrito, "aquele que se gloria, glorie-se no Senhor" (1 Co 1.30-31)

Entrementes, dizemos que fé sozinha nos justifica, isto é, nos concede a remissão de pecados e o pronunciamento de justo diante de Deus em virtude da justiça de Cristo, porque ela (a fé) é o meio receptivo da promessa. O que vem da promessa incondicional é realizado por Deus e tão somente recebido, jamais conquistado. Por essa razão, Abraão foi declarado justo pela fé naquele que prometeu e não por um trabalho que ele realizou (Rm 4.2-6). Paulo ensina que Abraão recebeu, posteriormente, a circuncisão não para ser justificado por esta obra, pois mediante a fé, já era reputado justo, mas para tivesse no corpo um sinal cuja a exortação exercesse a fé e a confessasse diante dos outros (Coram Mundo), e com seu testemunho convidar outros a crerem. (Apol. art. IV). Da mesma forma, Israel recebeu a lei depois de ter sido libertado do cativeiro no Egito, depois de ter sido salvo das mãos de faraó, não para ser justificado por meio dela, mas que, mediante essa lei, eles fossem reconhecidos como povo santo, escolhido de Deus e luz para o mundo, apontando para a promessa futura. Assim também nós somos justificados pela graça, recebida pela fé apenas (Ef 2.8), mas somos chamados a praticar as obras de antemão preparadas (Ef 2.9-10), não para que venhamos a ser justos por meio delas, mas para ser luz do mundo e guiar as pessoas até Cristo e sermos reconhecidos como povo escolhido para anunciar as grandezas daquele que nos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz (1Pe 2.9).

Afirmar a doutrina da Sola fide, é reiterar o Solus Christus, isto é, que apenas Jesus é nossa justiça, nossa esperança e nossa salvação. Justificados pela fé temos paz com Deus (Rm 5.1), pois não olhamos para nossos esforços em cooperar com a graça, mas olhamos para quem já cumpriu a lei perfeitamente em nosso lugar, Jesus, o objeto da nossa fé. Quando nos é dado o dom da fé, somos unidos com Cristo e, assim, nos tornamos partícipes da natureza divina (2 Pe 1.4). Então, essa união mística entre Cristo e o fiel, como diz Lutero no sermão "as duas espécies de justiça" nos une a Cristo como uma noiva que se une ao noivo. Na comunhão de bens o que é de um, passa a ser do outro; A justiça de Cristo se torna a minha justiça, sua pureza se torna a minha pureza e sua virtude se torna a minha virtude. Dessa forma, sou achado nele, não tendo justiça própria, que procede de lei, mas aquela que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé (Fp 3.9).

Desse modo, não há méritos inerentes a mim que me justifiquem diante de Deus. Ao contrário, sou beneficiado com uma justiça alheia, que pertence a outrem, a Cristo. Assim como me foi passada a culpa pelo pecado cometido por outro (Adão), A justiça advinda da obediência de outro (Jesus) me é atribuída sem obras ativas da minha parte (Rm 5.19). Contra a acusação de ficção legal, ou seja, de Deus declarar justo quem, na verdade é injusto, ensinamos que a justiça perfeita de Cristo não apenas nos cobre (Is 61.10), mas nos torna realmente limpos e justos (Rm 3.24), pois essa justiça passa a ser nossa por imputação; Deus nos declara justos creditando a nós os méritos de Cristo que recebemos pela fé (CA. art IV), pela qual nos tornamos participantes da natureza divina. Assim como pela palavra Deus criou o universo do nada (Gn 1.2), assim também pela Palavra Ele nos faz novas criaturas (2 Co 5.17), fazendo do injusto, justo em virtude daquele se entregou pelos injustos. 

Essa alegre troca é ilustrada na epístola a Diogneto (120 D.C) que, no capítulo 9, diz: "Ele enviou seu Filho para nos resgatar, o santo pelos ímpios, o inocente pelos maus, o justo pelos injustos, o incorruptível pelos corruptíveis, o imortal pelos mortais. Que outra coisa poderia COBRIR OS NOSOS PECADOS SENÃO A SUA JUSTIÇA? Por meio de quem poderíamos ser JUSTIFICADOS, nós os injustos, a não ser UNICAMENTE pelo Filho de Deus? Ó doce troca, ó obra insondável, ó inesperados benefícios! a injustiça de muitos foi reparada por um só Justo, e a JUSTIÇA DE UM SÓ torna justos muitos outros!"

Como os méritos advindos da obediência e sacrifício de Cristo são infinitos, segue-se que eles não podem ser complementados por coisa alguma que nos torne ainda mais justos. A justiça que temos é a justiça perfeita e infinita de Jesus que, não se restringe apenas ao aspecto forense, ela também opera em nós, como fruto da nossa união com ele, um aspecto transformativo, nos conformando cada vez mais à santidade de Cristo e nos tornando retos perante a lei divina; tudo isso por que ele opera em nós tanto o quer como o realizar de acordo com sua boa vontade (Fp 2.13).

Portanto, que não esqueçamos a rica mensagem que Tiago nos passa. Nossa fé deve ser viva e justificada pelas nossas obras. Que o mundo veja Cristo em sua vida. E mediante uma vida justificada por um testemunho de transformação que Jesus operou em ti, você possa demonstrar, pelo amor e pela caridade, a nova identidade que Deus lhe deu pela fé e pelo batismo e, assim, possa praticar a religião pura e sem mácula para com o nosso Deus e Pai o quer: visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições e guardar-se incontaminado do mundo (Tg 1.27), demonstrando com obras o trabalho que resulta da fé (1 Ts 1.3) ,de fé em fé, pois o justo viverá pela fé (Rm 1.17).



Mateus Magalhães
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